O jornalismo, «os jornalistas»<br>e as distinções necessárias

Fernando Correia

Logo que o es­cân­dalo BES re­bentou sur­giram di­versas vozes afir­mando o seu in­dig­nado es­panto pelo facto de ao longo dos anos a co­mu­ni­cação so­cial nunca ter in­ves­ti­gado nem de­nun­ciado as fal­ca­truas no reino do Es­pí­rito Santo, e daí par­tindo para mais ou menos pom­posas, mais ou menos mo­ra­listas, acu­sa­ções «ao es­tado a que o jor­na­lismo chegou» e «aos jor­na­listas que temos».

Co­locar no banco dos réus e acusar ge­ne­ra­li­za­da­mente «os jor­na­listas», no caso do BES como nou­tras si­tu­a­ções, pode ser fruto de le­vi­an­dade, ig­no­rância… ou se­gundas in­ten­ções. Conduz, de qual­quer modo, a uma aná­lise, no mí­nimo, pe­ri­go­sa­mente sim­plista – ou ar­di­lo­sa­mente mon­tada… – no sen­tido de en­co­brir e des­viar as aten­ções do lugar dos jor­na­listas na pro­dução da in­for­mação e do papel dos media na so­ci­e­dade ca­pi­ta­lista, e con­cre­ta­mente em Por­tugal.

Não são os jor­na­listas, mas sim os pro­pri­e­tá­rios dos grandes grupos eco­nó­micos, que mandam na co­mu­ni­cação so­cial do­mi­nante – jor­nais e re­vistas de grande ex­pansão, es­ta­ções de rádio e de te­le­visão de âm­bito na­ci­onal, sí­tios on­line. E do­mi­nante por isso mesmo: está nas mãos da classe do­mi­nante e os con­teúdos que vei­cula do­minam a in­for­mação e a opi­nião a que a ge­ne­ra­li­dade das pes­soas tem acesso, assim con­di­ci­o­nando os gostos, há­bitos e com­por­ta­mentos dos por­tu­gueses.

Para além da na­tu­reza da pro­pri­e­dade há ou­tros elos da ca­deia que não podem ser es­que­cidos. O mais im­por­tante é a pu­bli­ci­dade, prin­ci­pal­mente a de­pen­dente dos grandes grupos, na­ci­o­nais e mul­ti­na­ci­o­nais, li­gados ao nú­cleo duro do ca­pi­ta­lismo, com peso ab­so­lu­ta­mente de­ci­sivo na eco­nomia dos media, mas que se re­flecte também, di­recta ou in­di­rec­ta­mente, nos con­teúdos, in­cluindo os in­for­ma­tivos. É a con­quista de pu­bli­ci­dade que pre­side às es­tra­té­gias dos media porque é ela que dá lucro aos media – lucro fi­nan­ceiro mas também, tendo em conta os con­teúdos di­vul­gados, lucro po­lí­tico e ide­o­ló­gico.

Uma abs­tracção

Mas atenção: «os jor­na­listas» são uma abs­tracção. Quando se acusa «os jor­na­listas» – e o caso BES é apenas um exemplo – da qua­li­dade e do sen­tido da in­for­mação e da opi­nião que nos chegam, de quem es­tamos a falar?

Das cen­tenas que nos úl­timos anos têm vindo ou estão na imi­nência de ser «re­es­tru­tu­rados», «res­cin­didos», em­pur­rados para a «re­forma» ou sim­ples­mente des­pe­didos? Dos que vêem os sa­lá­rios reais di­mi­nuídos, os que nada re­cebem pelas horas ex­tra­or­di­ná­rias, os que são im­pe­didos de pro­gredir na car­reira e no ven­ci­mento, os que têm con­trato com um jornal e, sem re­ceber mais um cên­timo, têm de tra­ba­lhar para o on­line, a rádio ou a TV do grupo? Dos pre­cá­rios, os pagos à peça, os fre­e­lance não por opção mas por lhes ser re­cu­sado con­trato? Dos es­ta­giá­rios cur­ri­cu­lares, uti­li­zados de borla e de cara alegre, como subs­ti­tutos dos pro­fis­si­o­nais que já lá não estão? Dos que pra­ticam todos os dias, agar­rados ao com­pu­tador, um no­ti­ci­a­rismo muitas vezes pouco es­ti­mu­lante mas que é útil? Dos que têm por ta­refa correr as portas dos tri­bu­nais e das sedes par­ti­dá­rias em busca de uma frase bom­bás­tica ou de uma me­xe­ri­quice que faça man­chete ou abra um no­ti­ciário? Dos que vêem as suas pro­postas para uma re­por­tagem ou uma in­ves­ti­gação serem re­cu­sadas porque «não há di­nheiro» ou são «in­con­ve­ni­entes» à «linha» do órgão, isto é, ao in­te­resse co­mer­cial ou po­lí­tico dos pa­trões?

Dos que, ocu­pando ou não lu­gares de co­or­de­nação, de forma res­pon­sável e pa­ci­ente ori­entam, cor­rigem e ajudam o tra­balho dos menos ex­pe­ri­entes, en­tre­gues quo­ti­di­a­na­mente a uma ro­tina es­sen­cial à qua­li­dade do pro­duto final e à ne­ces­si­dade de que a edição es­teja pronta a tempo e horas? Dos que, dis­creta mas hon­ra­da­mente, longe dos ho­lo­fotes, de­sen­volvem tra­balho de qua­li­dade, in­cluindo em lu­gares de res­pon­sa­bi­li­dade exe­cu­tiva ou re­a­li­zando in­ves­ti­ga­ções de im­por­tante sig­ni­fi­cado so­cial e po­lí­tico, apro­vei­tando as bre­chas abertas pela guerra das au­di­ên­cias?

Uma certa elite

A ver­dade é que para além destes pro­fis­si­o­nais, ou­tros há – uma pe­quena mi­noria – que, ocu­pando po­si­ções de di­recção e de res­pon­sa­bi­li­dade edi­to­rial, fun­ci­onam como veí­culos pri­vi­le­gi­ados de trans­missão, quer para dentro das re­dac­ções quer para o ex­te­rior, das ori­en­ta­ções das ad­mi­nis­tra­ções e dos in­te­resses que elas re­pre­sentam. Deles não será de es­perar a ini­ci­a­tiva de in­ves­tigar os me­an­dros dos ne­gó­cios dos ban­queiros, dos pa­trões da grande dis­tri­buição e de ou­tras em­presas que fi­nan­ciam a co­mu­ni­cação so­cial…

Muitos as­sinam co­lunas na im­prensa, têm lugar ca­tivo em pai­néis te­le­vi­sivos, mis­turam im­pu­di­ca­mente a no­tícia com o co­men­tário. E a sua vi­si­bi­li­dade, pro­por­ci­o­nada pela pre­sença te­le­vi­siva, leva a que muitas vezes a sua imagem se trans­forme na imagem que se tem dos jor­na­listas em geral.

É óbvio que as ge­ne­ra­li­za­ções têm de ser evi­tadas. Não seria cor­recto cair no sim­plismo de di­vidir a pi­râ­mide das salas de re­dacção entre «bons», os que estão em cima, e «maus», os que estão em baixo. Ne­ces­sário é termos cons­ci­ência dos me­ca­nismos da pro­dução da in­for­mação e da exis­tência de uma certa elite jor­na­lís­tica, com um papel es­sen­cial na con­cre­ti­zação da função de­ter­mi­nante dos media na so­bre­vi­vência e pro­moção, em geral, do sis­tema ca­pi­ta­lista, e em con­creto dos in­te­resses do grande ca­pital e das po­lí­ticas e dos po­lí­ticos ao seu ser­viço. Como, hoje e aqui, bem sa­bemos.

 



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